Até ao final deste mês a casa-museu Guerra Junqueiro (no Porto) recebe a exposição “Apelo à Paz”, que se define como uma “exposição de arte contemporânea” entre Portugal e o Japão.

Este projecto criativo começou no Japão, tendo o Museu da Paz de Nagasaki (localizado perto do epicentro do bombardeamento nuclear) proposto à cidade do Porto – cidade geminada com Nagasaki – uma colaboração de artistas com o tema da Paz, e mais exactamente com o objectivo de despertar consciências para a importância de não voltar a ocorrer uma guerra mundial. A artista plástica Mami Higuchi e a Matriz – Associação de Gravura do Porto aliaram-se então a Sanae Yamamoto (em Nagasaki) para tornar este projecto possível, tendo daí resultado uma exposição que já esteve em Nagasaki durante o Verão e que está agora em Portugal graças ao apoio da Dra. Ana Clara, directora da Casa-Museu Guerra Junqueiro.
Para um pequeno vídeo sobre a inauguração desta exposição no Porto veja aqui.
Em seguida vou apresentar a minha impressão da exposição, que é naturalmente muito subjectiva e limitada, mas – espero – servirá de motivação para uma visita vossa e consequentemente poderão formar uma opinião própria sobre os trabalhos expostos.
O primeiro trabalho que se nos apresenta é uma gravura belíssima de Mami Higuchi, acompanhado por um texto igualmente surpreendente, pois é muito pessoal e profundo. Nele, a autora escreve sobre as “linhas de fronteira entre os países”, um tópico sobre o qual, sobretudo desde a Primavera deste ano, é particularmente importante reflectir. Não pude deixar de notar que os textos dos artistas japoneses eram mais directos ao tema da exposição, possivelmente porque a reflexão sobre o sofrimento, a destruição e a guerra é um trabalho de longo curso na sociedade japonesa. Tomiyuki Sakuta, um dos artistas expostos, reflecte sobre qual será o papel da arte e dos artistas no projecto de “reconhecer” a validade do argumento de “muitas religiões, ideias, e costumes diferentes”, e desse modo – através do encontro e não do conflito – alcançar a paz.
Existem efectivamente alguns equívocos na museografia, que infelizmente acontecem mesmo nas exposições mais bem planeadas, mas convido-vos a não ficarem muito irritados com eles (eu não me posso exigir isso, sendo historiadora de arte e tendo trabalhado em museus já se torna um “defeito” profissional): por exemplo a obra de Ryuta Endo tem o título escrito à mão pelo próprio autor e é “Evanescence” (o próprio escreveu em inglês), mas na legenda desta obra o título indicado é “Transforming”; alguns textos estão apresentados em inglês sem o original em japonês, uma pena, sobretudo quando uma pessoa que já tenha alguma experiência em tradução consegue logo ver que houve lapsos na tradução e por isso seria útil ter o original disponível; também há uma obra que deveria imperativamente estar iluminada (é uma espécie de candeeiro de papel e a luz é uma parte desse trabalho escultórico) e não está, etc…
Causou-me forte impacto a obra (um par delas na verdade) de Kazushige Hamamoto: “Where 1” e “Where 2”, designados “painel acrílico”. São formas estanques, com cores definidas e fronteiras claras, mas encaixadas numa justaposição apertada, orgânicas, com um efeito de complementaridade. Para lá da coexistência parece haver interdependência. Será a expressão da relação – pelo menos em potencial – entre os indivíduos? Entre mundos que se disponham ao encontro?
Esta exposição tem muito que apreciar em pouco espaço, se for com um grupo (ou estiver um grupo lá dentro) deixe passar as pessoas até não estarem mais do que três na sala. As obras precisam de ser vistas de longe e de perto, e devido à própria casa-museu acabaram por ficar demasiado perto umas das outras. Nada de incontornável contudo, leve o seu tempo. Por exemplo, na obra “árvore dos desejos”, que simula a decoração do festival Tanabata, há muitos “desejos” para ler. E se fosse escrever um desejo seu, qual seria?
Confesso que fiquei um pouco desiludida com as obras portuguesas, no geral, pois não me pareceram tecer reflexões tão sentidas sobre o tema da exposição. Não é um julgamento estético, mas antes ético. Pareceu-me um desperdício de oportunidade… No entanto destaco positivamente a obra de Hugo de Almeida Pinho. Trata-se da projecção de 81 slides de 35mm, cada um deles com uma foto de pormenor, na qual o “sujeito” é sempre um buraco. Buracos pequenos ou grandes (não sabemos, não há escala), fissuras, rasgões, vestígios de pancadas, incúria, velhice, desastre, passagens de ar e de luz. Espaço onde deveria haver um muro, uma parede ou outra barreira. O autor escreve que se trata de “uma documentação fotográfica (…) sobretudo na zona da cidade do Porto: Bonfim, Campanhã, Freixo”. A ideia da “visibilidade reduzida a um ponto” e a do “lugar de invasão e de evasão” ficam extremamente bem enquadrados nesta exposição, aliás, a obra do artista português sai enriquecida do facto de estar posicionada na parede oposta à de Mana Aki, sobre papel japonês e a sua tradição de “dividir espaços, controlar a luz e purificar o ar”.
A exposição tem ainda mais dois espaços, inconvenientemente separados do primeiro por serem num outro piso e na ala oposta do edifício, o que pode talvez fazer parecer que é uma parte menor da exposição para o visitante distraído. Mas não é, com efeito esta segunda secção trata de dois dos temas mais relevantes em toda a questão da comemoração do final da Segunda Guerra Mundial e da maneira como Nagasaki lida com isso.
Uma sala expõe desenhos de crianças de escolas primárias portuguesas e outras de escolas primárias japonesas. Não são dados pormenores sobre como o tema foi introduzido a estas crianças mas vemos no resultado final – as suas obras de arte – que a impressão é profundamente pessoal. Além do interesse evidente da arte infantil também é notório que estas crianças desenharam especificamente sobre o tema do bombardeamento, ou – por oposição – do sonho da paz e do fim absoluto das guerras, no que deve ter sido uma experiência educativa (e cívica) muito relevante das suas vidas.
A outra sala exibe um filme com menos de 10 minutos que eu, devido ao meu tema de investigação e na sequência do documentário que criei para a exposição “Património de Cristianismo no Japão” (em Dezembro de 2014) só posso classificar de MUITO BOM! Este filme mostra com a dose certa de razão e de emoção qual é o equilíbrio delicado de significados (para a população de Nagasaki) entre uma bomba atómica e a história do cristianismo; mostra o que é e como se fundamenta a atitude de Nagasaki em relação à sua história, o modo como investiu em movimentos de paz e de negação do poder nuclear (recordo que o presidente da Câmara Municipal de Nagasaki teve a “ousadia” de falar pública e directamente ao Primeiro Ministro sobre a sua posição e a posição de Nagasaki em relação à reactivação da energia nuclear e das centrais nucleares, posição essa que é um redondo “não”).
A exposição é de entrada livre e convido realmente a visitarem a desfrutarem desta oportunidade para, em conjunto com a arte, reflectirem sobre essas ideias difíceis mas que não podem ser ignoradas: a guerra, o conflito, a destruição e a morte. No fundo, a preciosidade da Paz sai realçada quando pensamos nisto.
Inês Carvalho Matos