Dias de chuva, um frio que se começa a instalar e a pedir a manta sobre o colo, a chávena de chá fumegante… Em domingos assim eu sinto a urgência de me dedicar a um livro. Nem sinto fome ou qualquer outra necessidade, todo o meu ser se deleita com a leitura. É um prazer peculiar, que nem toda a gente tem; nestes dias o livro encadernado tem sido preterido face a tablets e outros. Mas suponho que ainda há quem não desista de dar aos autores o merecido tempo de invadirem as nossas cabeças pelo artifício de lermos as suas palavras em folhas de papel.
No domingo passado, ainda de madrugada, peguei num dos volumes que tinha trazido de uma das muitas feiras e pequenas vendas que visito. Tratava-se de um “A5” não muito pesado, com uma capa da mesma cor das folhas de ginko que agora encontramos nas alamedas: aquele amarelo meio-torrado meio-dourado. Lembrava-me que o tinha comprado por ter lido na lombada uma breve descrição do tema de natureza onírica, ou talvez mesmo surrealista. Um dos traços que mais gosto da ficção japonesa é a capacidade de ligar (e não meramente de misturar) o impossível com o quotidiano realista. Há uma maneira de o fazer na literatura ocidental, claro (afinal, “A metamorfose”…), mas também é verdade que há uma maneira “japonesa” de criar este tipo de narrativas, com um pouco mais de – chamemos-lhe assim na falta de melhor termo – inteligência emocional.
O livro tem o título “Um dia sonhei que voava” e a edição em língua portuguesa desta obra de Taichi Yamada foi feita pela Editora Civilização em 2007. Pesquisei depois, para vossa informação, que esta edição em língua portuguesa foi traduzida da versão em inglês, que por sua vez foi a primeira tradução do original em japonês: “Tobu yume wo shibaraku minai” (do final dos anos 80). As traduções dos romances de Taichi Yamada foram efectivamente muito tardias, mesmo as primeiras traduções de japonês para inglês (de onde depois quase todas as outras se seguem) foram feitas entre dez a quinze anos depois dos leitores japoneses terem acesso a estas belas histórias. E a razão para isso não é a falta de sucesso!
Com efeito, Taichi Yamada (que tem o nome de nascimento Taichi Ishizaka) é um autor bem conhecido no campo do guionismo para televisão e da literatura de ficção. Só se dedicou à escrita depois dos 30 anos mas os filmes e séries que resultaram da sua escrita cativaram largas audiências e sobretudo entraram na cultura popular do Japão. “Tabu Yume wo” terá sido o seu terceiro romance, mas ao lê-lo ficamos com a sensação que é mais um conto alargado do que um romance. Para além das propriedades claramente “fílmicas” do modo como desenrola a narrativa (ou as “cenas”), a história tem, literariamente falando, toda a estrutura e estilo de um conto.
No livro seguimos as acções e pensamentos de Taura, um homem de 48 anos, ao qual acontecem coisas incríveis depois de ter tido um esgotamento nervoso e um acidente ao ser promovido para um cargo de grande responsabilidade na sua empresa. A família de Taura afasta-se dele emocionalmente quando todos os sinais “profanos” indicam que ele é um falhado. Mas de certo modo é aí que a vida de Taura começa a ser interessante, ou como o mesmo diz, “livre”. O ingrediente que falta é o gatilho que dispara a história, e que aqui é Mutsuko. Mas o que é ela, uma velha, uma mulher adulta, uma adolescente, ou uma criança? Mutsuko é a “princesa” do “príncipe” na análise do folquelore europeu, na teoria da psicanálise e na história da literatura, é a “outra parte” do EU. Através das suas experiências de vida com Mutsuko, Taura vive finalmente toda a viagem emocional da sua existência, desde o hedonismo à compaixão, passando pela aventura e adrenalina, aceitando a frustração e a perda. Taura nunca se arrepende ou nega as solicitações de Mutsuko porque o que os une é a própria força de viver, de existir. A palavra “amor” nunca é empregue, isto é o Japão afinal…Mas seria talvez mais correcto aplicar a palavra “Eros” no seu sentido helénico e cosmogónico.
Ao contrário de muitos outros livros escritos por homens maduros e que dissecam momentos relacionais entre um ser masculino e um ser feminino, neste eu não me senti ausente. Não senti artificialidade, paternalismo, objectificação. Em vez disso a narrativa pareceu-me ter camadas cada vez mais subtis; a uma interpretação literal (ainda assim muito interessante) sucedia-se uma interpretação introspectiva, e depois ainda uma mensagem de questionamento metafísico. Foi uma leitura que me agarrou da primeira à última página, e graças à sua dimensão modesta (187 páginas), foi possível fazer esta extraordinária deriva em relação à realidade num único domingo! Senti que fiz umas férias, espreguicei-me como um gato e sorri para o pôr do sol.
Em 1990 o realizador Eizo Sugawa levou “Tobu Yume Wo” para as salas de cinema.
Informações úteis: este livro pode ser encontrado em Feiras do Livro, pequenas vendas de livros em eventos culturais, e livreiros de “outlet” por 5 euros (o preço pelo qual o comprei), embora a aquisição através da Editora Civilização, do website Wook.pt ou de livrarias maiores tenha o preço de capa de 15 euros.