Na próxima sexta-feira voltamos a juntar-nos em volta de boas leituras. O livro deste mês é “Elogio da Sombra”, de Junichiro Tanizaki. Seguimos a edição de bolso da Relógio d’Água.
O autor e o seu tempo
Junichiro Tanizaki nasceu em 1886, na área metropolitana de Tokyo, no seio de uma família que se dedicava ao comércio e especulação do preço do arroz. Nestas condições, Junichiro encontrava-se no lado afortunado da sociedade, embora rodeado de eventos mais ou menos turbulentos. Em 1868 o Japão tinha assistido a uma das mais dramáticas mudanças de regime político da história mundial: a transição do sistema do shogunato Tokugawa para o governo imperial Meiji, com a subsequente formação de parlamento e redação da constituição. Ao nível da população em geral o velho sistema fundado em clãs familiares e clientelismo feudal ainda vigorou, em paralelo, por vários anos. Algumas das reformas, nomeadamente ao nível da organização da produção agrícola e estabelecimento de preços para os bens alimentares, provocaram revoltas violentas, como por exemplo a de Chichibu, apenas dois anos antes do nascimento de Junichiro.
Em 1871 tinha-se implementado outra reforma problemática, que descaracterizava a identidade local das populações: a abolição do sistema “Han” para a organização do território e a sua substituição pelo sistema de “Prefeituras”. Este processo acentuou fenómenos como a migração interna, tendo muitas pessoas viajado dos campos para as grandes cidades em busca de meios de subsistência e novas raízes. Todo o estrato social das famílias Samurai estava em perigo, pois estas famílias consideravam-se donos da terra e dos seus rendimentos sem que tivessem outras profissões ou competências para além de estarem disponíveis para combater pelo respetivo superior. No novo sistema Meiji, o Imperador não necessitava de Samurai, e a classe tornou-se obsoleta. Em 1877 deu-se uma das maiores contra-revoltas que pretendia restabelecer a dominância do sistema baseado nas famílias Samurai, partindo de Satsuma (atual prefeitura de Kagoshima). Alegavam que o próprio Imperador poderia estar a ser um fantoche dos interesses das potências estrangeiras e que, ao resistir ao novo sistema, estavam na verdade a defender os interesses da família imperial. No entanto estavam também a prevenir que a sua destituição os tornasse em famílias virtualmente sem bens, sem património e sem estatuto.
Junichiro cresceu então numa cidade com um número crescente de habitantes, onde se discutia ativamente ideologia, moral, política, e o rumo do país, onde se debatia que elementos da organização administrativa de tipo “ocidental” eram convenientes para o “novo Japão”, quais deveriam ser adaptados, e como. Na sua infância fazia-se sentir o clima de que “nada é seguro” e de que todos os pressupostos podem ser depostos e substituídos. Os programas educativos ainda se focavam em disciplinas antigas, mas os eventos do mundo pareciam tê-los ultrapassado.
Para além disso, vindo acentuar ainda mais essa impressão generalizada da mudança, ocorreu um sismo de grande gravidade nas províncias a noroeste de Tokyo: o sismo de Mino-Owari de 1891 (ou 1890 conforme o calendário é ocidental ou oriental, porque foi em Fevereiro). Este terramoto teve a intensidade de grau 8.0, tendo deixado fendas muito grandes na paisagem rural. O seu impacto psicológico e cultural foi tão intenso que marcou o início dos estudos científicos de sismologia no Japão, tendo-se fundado nesse mesmo ano o Instituto de Sismologia. Foi a partir do estudo das réplicas deste sismo que o cientista Fusakichi Omori desenvolveu o seu trabalho (estudou a duração, ritmo e intensidade, efeitos na paisagem, na agricultura, etc), já que o evento de Mino-Owari teve mais de 3.000 réplicas ao longo de 14 meses.
Em Agosto de 1894, quando Junichiro tinha apenas 6 anos, inicia-se a Guerra entre a China e o Japão. O motivo desta guerra foi sobretudo o poder de influenciar o governo da Coreia, que era considerada pelo Império do Meio como um estado tributário (aproximadamente o mesmo que uma Região Autónoma como a Madeira ou Açores para Portugal). O governo do Japão entrou nesta guerra para prevenir que a Coreia fosse ocupada por potências imperiais ocidentais, as quais estavam sistematicamente a ganhar terreno no mar da China. O interesse da Prússia na Península Coreana e a incapacidade do exército do Império do Meio para fazer frente às táticas ocidentais preocupavam o Imperador Meiji, pois poderiam vir a tornar o Japão também vulnerável a tentativas de colonização. No entanto, quando a guerra acabou, em 1895 e com a vitória do Japão, os interesses nipónicos deixaram de ser apenas preventivos e passaram a ser mais agressivos. Entre as novas elites militares, muitos deles chefes Samurai convertidos apenas nominalmente em generais e líderes armados, existia a necessidade de provar a honra e glória do novo estado japonês. Logo em 1895 prosseguiram para a Invasão da Formosa (atual Taiwan), onde o governo japonês passou a ter soberania nos 50 anos seguintes.
A educação de Junichiro refletiu o seu tempo. Foi educado tanto nas letras clássicas da China como na literatura ocidental. Quando escolheu os estudos universitários renegou a herança de empreendedorismo e comércio da sua família e escolheu fazer parte da nova vaga de jovens rapazes “eruditos nas artes e letras”. Estes jovens não ambicionavam ser “artistas” (não no sentido que se dá ao termo no Ocidente) mas reclamavam para si um lugar inédito na sociedade japonesa, pois recusavam veementemente a integração na febre da produção industrial ou na vida mercantil. Sendo citadinos, não se reconheciam nas zonas rurais, mas a pressão sentida nas cidades exercia neles ansiedade e insegurança, pelo que se refugiavam na criação literária e no debate frívolo de política, de relações familiares e de dilemas de valores. Quando conseguiu entrar na mais cobiçada universidade do país, a Universidade Imperial de Tokyo, em 1908, inscreveu-se no Departamento de Literatura Clássica Japonesa. Mas foi junto dos seus colegas de curso que encontrou o seu grupo, e que se reconheceu como escritor, tendo-se desinteressado rapidamente pelo lado formal das palestras, ao ponto de nunca ter concluído a sua formação.
O seu primeiro romance é apenas de 1925 (Chijin no Ai), mas desde 1910 que escrevia contos, os quais foram sendo publicados por pequenas editoras ou integrados em publicações periódicas. Os temas por ele escolhidos procuram provocar no leitor a sensação de desconforto, repulsa ou medo, trata também muitas vezes as relações disfuncionais entre homens e mulheres, o masoquismo e a tirania. Em 1922 tinha criado o texto para teatro Okuni and Gohei, mais longo que os habituais contos, com temática histórica e marcado pela violência.
O grande terramoto de 1923, que viria a mudar profundamente a cidade de Tokyo, fez com que Junichiro tomasse a decisão de abandonar definitivamente a cidade. Por um lado estava muito descontente com a modernização urbana, e por outro estava mais interessado no que se passava criativamente na região de Kansai (Kyoto, Osaka, Kobe), onde a relação Oriente-Ocidente tinha características muito diferentes de Tokyo. Kyoto oferecia-se-lhe como uma paisagem pitoresca, de um Japão tradicional idealizado, lutando para se redefinir com graça e charme. Osaka, a cidade do porto e do comércio, era mais relaxada ao nível da política e do papel dos militares na sociedade. Kobe, o local de todas as embaixadas das potências ocidentais, falava todas as línguas e podia ter um café parisiense ao lado de uma banca da ramen. O cosmopolitismo assentou-lhe bem, e o retrato das idiossincrasias da vida moderna, e dos seus personagens emergentes, tornou-se a sua inspiração. Datam deste período as suas obras de maior sucesso e qualidade, incluindo projetos tão inovadores como Manji (1930) que foi escrito inteiramente no dialeto de Osaka. Ensaiou a versatilidade cronológica em várias obras, como por exemplo em Momoku Monogatari (1931), um romance que se passa no século XVI e no qual todas as personagens são “vistas” por um protagonista que é cego, e que tem ambição de ser uma subtil sátira às escolhas políticas da sociedade japonesa desde esse período até à contemporaneidade.
Em 1949 o Governo Japonês reconheceu a proeminência de Tanizaki no campo da literatura contemporânea e o seu lugar no pódio dos grandes escritores japoneses de todos os tempos, tendo-lhe concedido uma Ordem. Em 1964 chegou a integrar a Lista de Atribuição de Prémio Nobel da Literatura, mas o seu nome veio a ser retirado sem que tivesse sido atribuído devido ao seu falecimento.
Desde 1958 que Tanizaki já não podia escrever, pois teve pequenos episódios de AVC nos anos precedentes, o que lhe paralisou a mão direita. A sua saúde degradou-se bastante no final da década de 50, o que culminou com o internamento hospitalar em 1960, tendo sido registado como angina de peito. Faleceu de ataque cardíaco em 1965.
O ensaio estético “Elogio da Sombra”
Este pequeno livro destaca-se na obra de Tanizaki porque não representa uma das suas obras de ficção. Em vez disso, neste livro o autor fala na primeira pessoa e dá-nos a sua impressão sobre a estética japonesa, num sentido lato. Considerando que a sua área era a das letras e não as das artes, o autor não assumiu que este livro tratava a história da arte japonesa, mas na prática oferece-nos uma visão que se aproxima muito do ensaio estético. A sua publicação em língua japonesa é de 1933 e tem como destinatário preferencial o público japonês que, no contexto da Modernidade, se afastava progressivamente da estética tradicional. O autor incorpora referências a obras literárias e correntes artísticas ocidentais, fazendo amplo uso das comparações, das reinterpretações e da crítica, mas o seu tema predominante é a apologia ao que considerava ser específico da sensibilidade japonesa. Em grande parte trata-se de uma “tradição sublimada”, no seguimento do que fizeram muitos outros intelectuais da época Meiji e posterior, para marcar uma identidade japonesa em contexto de dúvida e insegurança coletiva. A obra só viria a ser conhecida no Ocidente a partir da década de 70, tendo-se tornado rapidamente um manual de referência para estudantes de arte, design e arquitetura.
O título em língua japonesa remete para a ideia de aclamação/elogio, mas também para a de gratidão. As sombras seriam então um elemento essencial ao equilíbrio entre o cheio e o vazio, o espaço e o conteúdo, e teriam um papel essencial à apreciação das coisas, inclusivamente da própria luz (que se vê assim “temperada” por uma certa dose de sombras).